Análise estrutural do Conto "Um braço de Mulher" e trabalhando a problemática:
"Porque uma crônica estaria dentro de um livro de contos?"
“GÊNERO NÃO ME PEGA MAIS” – “UM BRAÇO DE MULHER” EM ANÁLISE
Erick Diego da Silva Abreu[1]
Considerado um dos maiores contos nacionais do século, (conforme livro Os cem maiores contos brasileiros do século organizado por Ítalo Moriconi) em “Um braço de Mulher”, Rubem Braga, aclamado por muitos como o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis, retrata um rotineiro voo entre RIO-SP na qual uma turbulência levaria ao encontro da virilidade do narrador o pânico de uma “senhora”.
O conto apresenta um narrador auto-diegético, isto é, protagonista, participando direta e ativamente da trama, notado em:
Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que "nós não podemos descer!". O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora. (MORICONI, 2009, p. 96).
O narrador personagem se qualifica como viril e atencioso. Caracterizado como personagem redondo já que o autor aborda sua complexidade de pensamentos e ações. Também se autodenomina “útil e responsável” ao ser o ponto de segurança da “donzela indefesa”. Já a “senhora” é apresentada como personagem plano, já que traz consigo o estereotipo de “indefesa e sexo frágil” tendo a necessidade de ser “protegida” pelo sexo masculino (forte e auto-suficiente). A mulher, por vezes histérica, encontrava no protagonista uma “segurança”, notado em:
O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem. (MORICONI, 2009, p. 97).
A trama é desenrolada toda dentro deste “pânico” criado pela turbulência. O avião, ao atingir um nevoeiro fechado, se vê impedido de pousar. Temos então este encontro da histeria da mulher com a virilidade, mas também com momentos de medo e pavor, do homem (narrador personagem). Ele vive uma luta contra seus próprios medos para demonstrar-se calmo e valente, para ser o suporte da amedrontada senhora. E assim o faz. Até que o avião conseguisse pousar. Já no aeroporto, enquanto aguardava para retirada da bagagem, se depara mais uma vez com ela, porém agora acompanhada de um “senhor de óculos”. Por fim, a trama se encerra com um sorriso discreto que romanticamente é interpretado pelo homem.
Com sua complicação (e também clímax) iniciada em: "nós não podemos descer!", o conto tem seu epilogo em: “Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.” (MORICONI, 2009, p. 98).
O conto é composto de focalizações internas (características psicológicas) e externas (características físicas):
E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção. (MORICONI, 2009, p. 96).
Também possui prolepse (salto no tempo) e elipse (omissão deste tempo), como notamos em : “Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que “nós não podemos descer”!. O avião já havia chegado a São Paulo” (MORICONI, 2009, p. 96).
Em certos trechos ainda se verifica monologo interior, ou seja, o ato de falar consigo mesmo, de expor íntimos pensamentos ou desejos:
A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas mal criações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida. (MORICONI, 2009, p. 97).
A trama apresenta tempo psicológico que reflete uma percepção subjetiva de tempo, como visto em: “Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo” (MORICONI, 2009, p. 97), provavelmente proposital já que fazendo uso deste tempo o autor reforça a ideia da preocupação excessiva do protagonista em manter a senhora em “segurança” a ponto de se desvincular desta questão.
O autor faz, em diversos pontos, o uso de digressões, uma fuga do desenrolar da história:
Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte. (MORICONI, 2009, p. 97).
O conto traz em todo desenrolar de sua trama focalizações externas, apresentando características físicas de personagens/local, como também internas, conceitos subjetivos a cerca de características psicológicas, ambos exemplificados respectivamente em:
[...] até as mãos de dedos longos. (MORICONI, 2009, p. 97).
A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça. (MORICONI, 2009, p. 97).
Possui o poder de envolver o leitor com traços de familiaridade tanto quanto ao espaço da narrativa, que é físico (em um avião) quanto às características de seus protagonistas. Tendo como antagonista “uma possivel queda do avião” e também o “senhor de óculos” apresentado no antepenúltimo parágrafo.
Vale-se também destacar que “Um braço de Mulher” traz consigo o “registro do cotidiano” forte característica das crônicas. No artigo A evolução da crônica como gênero nacional, André de Freitas Simões (UEL) expõe um dos pensamentos de Antonio Candido quanto a Rubem Braga: “Quando necessário, porém, apontar um nome como catalisador das mudanças desse período que estabelece o início da crônica moderna, Braga surge como escolha inevitável, sendo considerado, desde então, “o cronista”.” Como poderia então “Um braço de mulher” também ser caracterizado como conto? A resposta é que Braga trazia em suas obras uma densidade na qual não possuíam as crônicas que, por se restringirem ao “relato do cotidiano” ou de um único fato, possuía por si só um único tema ou incidente. Braga inova. Adere em algumas de suas obras, tendo como exemplo “Um braço de Mulher”, uma variação de temas e incidentes. Foge do “simples”, e antigo, efeito que a crônica possuía que era o de informar os fatos ao leitor de jornais. A crônica, se torna cheia de lirismo, romance, terror, monologo interior, complexidade e rica descrições das características não só dos fatos mas de sentimentos e sensações dos personagens. Fazendo-se alusão com trecho do livro Água viva, de Clarice Lispector na qual afirmava “Que mal porém tem eu me afastar da lógica? Estou lidando com a matéria-prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais.”
Conclui-se a analise destacando que tendo como assunto principal o medo e o romance (temas universais), com sutis pontos de comédia, e por que não destacar terror (como quando o narrador percebe que também pode morrer) fazem de “Um braço de mulher” um conto atual e de fácil identificação do leitor com a obra.
Referências
ARRIGUCCI JR., DAVI Os melhores contos – Rubem Braga. 12ed. São Paulo. Ed. Global, 2010.
MORICONI, ÍTALO Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro. Ed. Objetiva. 2000.
SIMÕES, ANDRÉ F. A evolução da crônica como gênero nacional. Paraná. 2009. Disponível em: <https://www.uel.br/pos/letras/EL/vagao/EL4Art5.pdf> Acesso em 31 outubro 2013.